Por Luciana Genro
O dia 1 de abril marca os 54 anos do golpe civil-militar que instaurou uma longa noite no Brasil. Foram 21 anos de ditadura, em que direitos políticos e sociais foram suspensos, a oposição foi brutalmente perseguida, torturada e assassinada e a imprensa esteve sob permanente censura.
É preciso lembrar que tortura, assassinato e violações dos direitos humanos foram a maior marca da ditadura militar. Entre 1964 e 1985 agentes públicos cometeram crimes cruéis contra os opositores do regime. Estupro, tortura física, psicológica, assassinatos e desaparecimentos foram praticados de maneira sistemática, planejada, organizadas pelas Forças Armadas e por agentes das polícias por meio de cadeias de comando conhecidas pela Presidência da República. Havia inclusive um manual de como os militares deveriam torturar para extrair confissões, com práticas como choques, afogamentos e sufocamentos.
Em 21 anos de ditadura foram 500 mil cidadãos investigados pelos órgãos de segurança e 200 mil detidos por suspeita de subversão. Estima-se que em torno de dez mil pessoas foram torturadas nos porões do DOI-CODI. Ainda temos em torno de 70 desaparecidos, que fazem com que seus familiares se mobilizem até hoje por Justiça e verdade.
Infelizmente nenhum governo brasileiro pós-redemocratização investiu fortemente numa política de memória, justiça e verdade. A ampla maioria dos torturadores sequer tem seus nomes divulgados e mesmo os conhecidos não receberam nenhum tipo de punição. A Argentina é o país que mais avançou neste sentido. Nossos vizinhos não apenas julgaram e prenderam os mandantes e os executores das barbáries praticadas durante a ditadura no país, como também nunca permitiram que a memória do horror fosse apagada.
No Brasil a ditadura impôs a interpretação de que a Lei da Anistia teria validade para jogar um manto de impunidade sobre os crimes cometidos pelos agentes da ditadura, referendado pelo STF em 2011. Por isso é uma boa surpresa a notícia de que a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, manifestou a intenção de requerer ao STF que rediscuta este tema. A própria procuradora reconheceu a imprescritibilidade dos crimes de tortura e o caráter permanente do crime de ocultação de cadáver.
O Brasil está, há muitos anos, no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O país recusa-se a cumprir a sentença da Corte no caso Gomes Lund X Brasil, proferida em 14 de dezembro de 2010, na qual a CIDH conclui que a interpretação dada à Lei de Anistia viola a convenção Americana dos Direitos Humanos. A sentença determina, entre vários outros pontos, que esta lei não pode ser obstáculo para o cumprimento do compromisso internacional assumido pelo Brasil de processar, julgar e punir os autores de graves violações aos direitos humanos.
Neste artigo de 2014, fiz um resumo do livro que publiquei em 2012, “Direitos Humanos, o Brasil no banco dos réus”, através do qual me somei às vozes de juristas e ativistas dos direitos humanos, bem como de familiares de desaparecidos e vítimas da tortura, que vêm lutando incansavelmente para que os crimes da ditadura não caiam no esquecimento. Esta luta nunca parou, mas se o STF de fato rediscutir o tema, sua intensidade vai aumentar.
Esta crosta de impunidade enraizada em nosso passado diz muito sobre nosso presente. A tortura ainda é uma triste realidade na rotina policial, especialmente se o suspeito for pobre, negro e morador de uma favela. A execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, reflete um tipo de autoritarismo político presente até hoje graças, também, à ausência de uma verdadeira Justiça de transição no Brasil e de uma mudança no modus operandi das polícias. Não avançaremos na resolução das mazelas atuais sem que este período tenebroso de nossa história seja passado a limpo. Feridas que nunca cicatrizam jamais podem ser curadas, e já está mais do que na hora de o Estado brasileiro encarar sua responsabilidade estrutural e coletiva nos crimes da ditadura e efetivar uma verdadeira Justiça de Transição. Em nome dos que tombaram e para que nunca mais se repita!