Artigo do filósofo e professor da USP Vladimir Safatle, originalmente publicado no site da Folha de São Paulo nesta sexta-feira (06/05).
“Novas eleições é golpe.” Foi assim que o vice-presidente, Michel Temer, e os próceres de seu partido procuraram desqualificar a proposta de eleições gerais como saída para a crise política na qual o país se encontra. A frase tem lá seu lugar na história.
Pois “eleições é golpe” deveria ser colocada ao lado de outras pérolas do bestiário político nacional, como: “Questão social é caso de polícia”, atribuída ao ex-presidente da República Velha e barão do café Washington Luís. Nas duas frases, expressa-se o desprezo imemorial da oligarquia brasileira pela soberania popular e pela escuta de suas demandas.
Chamar uma eleição de golpe é um claro sintoma a mostrar o que estes que julgam poder nos governar entendem por legitimidade e poder. Em uma democracia, eleição nunca é golpe, porque todo poder, todas as instituições e todas as leis fundamentam sua legitimidade em uma relação de expressão, direta ou indireta, com a vontade popular.
Por ser soberana, a vontade popular pode desfazer a qualquer momento as leis e os procedimentos que ela mesma enunciou e pode suspender a qualquer momento as escolhas que ela mesmo fez.
Na democracia, o povo é o legislador de si mesmo e, por isto, pode enunciar diretamente sua vontade no momento que bem entender. Ele não é escravo das decisões passadas. Se todo poder emana do povo, então cabe ao povo decidir também quando o poder e os governos devem ser destituídos.
Esta natureza destituinte da vontade popular na democracia é o elemento que amedronta todos os que ocupam o poder. Por isso, eles procuram criar toda forma de impedimento formal para que tal força destituinte não apareça. Os que ocupam o poder e julgam ter direito natural de mando sobre nós querem, muitas vezes, aproveitar-se das distorções da representação e dos conchavos nos bastidores escuros da República para aparecerem, do dia para a noite, no cerne do poder sem nos consultar. O sr. Temer e seu bando pensam assim.
A partir do dia 12 teremos uma situação inédita no Brasil. Nunca alguém julgou poder nos governar iniciando um governo com tanta rejeição, contestação e ilegitimidade. Ninguém votou em Temer, e não é por outra razão que a população brasileira se une para rejeitá-lo.
O argumento de que ele foi escolhido como vice-presidente é pueril. Como é da natureza ontológica da vice-presidência, Temer foi escolhido para ser uma figura meramente decorativa, não para conspirar e depor uma presidenta eleita em um golpe que o mundo inteiro vê estarrecido. Se alguém deveria ser punido por “desvio de finalidade” neste país, é ele.
Por ser alguém que não representa ninguém a não ser a casta política que procura permanecer no poder sem legitimidade alguma, ele não vê maiores problemas em montar um governo cujo ministério será composto basicamente por oligarcas locais, políticos corruptos investigados e perdedores das últimas quatro eleições presidenciais.
Como, no fundo, todos sabem que este governo não é solução para problema algum do Brasil, mas é, na verdade, o começo de uma nova série de problemas e de acirramentos sociais com as respostas violentas de praxe, já se prepara a consagração final do golpe por meio da instauração do parlamentarismo.
Como a oligarquia sabe que não é capaz de ganhar eleições, ela sonha em nos governar por meio de um sistema que coroa o Congresso e seu um quarto de deputados indiciados.
Sejamos claros: no Brasil, o Congresso se transformou em uma partidocracia corrompida que gerencia eleições eivadas de distorções ligadas à presença do poder econômico, a casuísmos, ao limite brutal do tempo de campanha, à mobilização de uma imprensa recheada de canais de comunicação de posse, direta ou indireta, dos próprios políticos.
Ou seja, o Congresso representa apenas suas próprias distorções e sua forma de controlar o jogo da representação a fim de se reproduzir como casta. O resultado não poderia ser outro: um Congresso composto por 80% de homens brancos, quase 50% de milionários, mais de 30% de ruralistas. Isto não representa Brasil algum.
Contra esse cenário de horror que se avizinha, a única resposta possível é fazer eleições gerais já. Que os embates políticos voltem à rua, que é seu lugar natural. A Nova República começou com o grito de Diretas Já e terminará com o grito de Diretas Já. Este grito representa a demanda nunca realizada da política brasileira: colocar efetivamente a soberania popular no centro do poder. Fora, Temer.