*Artigo do filósofo Vladimir Safatle publicado originalmente na edição desta sexta-feira da Folha de São Paulo.
Muito já foi dito a respeito dos terríveis atentados em Paris, mas talvez ainda seja necessário insistir em uma questão que alguns lutam com todas as forças para distorcer: “Como chegamos até aqui?”. Pois estamos tão envenenados por teorias rocambolescas de choques de civilização, tão anestesiados pelo medo como motor de coesão social e como força de justificativa para delírios militaristas que ficamos paralisados diante da exigência urgente de reconstruir a sequência de nossos passos até o abismo.
Para produzir uma aberração como o Estado Islâmico é preciso um verdadeiro sistema de erros e cegueiras reiterados por anos a fio. É claro que, nessas horas, aparecem os trombeteiros do Apocalipse de sempre, com seus preconceitos rasos a respeito do mundo árabe e de uma religião que eles sequer conhecem. Com suas explicações que mais parecem saídas da era medieval das Cruzadas, e fazem de tudo para não deixar ver como o “arcaísmo” é algo que se constrói a ferro e fogo no presente.
Vejam, por exemplo, a história de Hasna Ait Boulahcen. Francesa “de origem árabe”, 26 anos, moradora da periferia pobre de Paris, ela, segundo seus amigos, “adorava festas, namorados e bebidas”. Antes dos últimos seis meses, ela preferia chapéus de cowgirls a burcas. Da mesma forma, há até bem pouco tempo, ela não lera nenhuma linha do Corão. No entanto, Hasna participou dos atentados em Paris que mataram barbaramente 130 pessoas.
Ninguém precisa de PhD em psicologia social para compreender como sua conversão a membro de uma organização terrorista que leva o nome de uma religião nada tem a ver com arcaísmos ligados à pretensa resistência de modos de vida tradicionais aos nossos valores liberais. Ou seja, esses jovens urbanos europeus não abraçaram o Estado Islâmico por estarem enraizados em tradições refratárias e sistemas rígidos de hábitos. Ao contrário, eles procuravam arcaísmos exatamente porque não havia mais tradição alguma.
Eles adotaram uma tradição fabricada para expressar a violência contra promessas de modernização social que, para eles, não haviam dado a integração prometida. Há de se conhecer a periferia de onde vieram para perceber como a miséria, a falta de horizonte, as batidas policiais diárias, o racismo ordinário travestido de “luta pela defesa de nossos valores” rondam.
Presos em um vazio no qual não havia nem tradição nem modernidade, eles acharam uma organização que unia o espírito de gangues de delinquentes que conheciam bem, violência bruta e uma narrativa gloriosa que mistura bricolagens religiosas e redenções de um passado épico capaz de deixar para traz o sentimento de humilhação social. Alguns poderiam ver, com tal explicação, uma tentativa de vitimizar assassinos dementes. Melhor seria lembrar, como Hannah Arendt, que o caráter aterrador de nossa situação está no fato de não ser necessário ser monstro para produzir monstruosidades.
O Estado Islâmico conhece bem os afetos de pessoas como Hasna, seu ressentimento e humilhação, sabe muito bem como vampirizá-los. Afinal, ele é filho de outro vazio, este produzido pela catástrofe político-social resultante das invasões criminosas ao Afeganistão e ao Iraque. Mas o Estado francês e toda a camarilha de loucos por fronteiras, fortalezas, identidades e balas “de autodefesa” que aparecem nessas horas não querem saber de nada disso. Por isso, suas respostas foram todas as que o Estado Islâmico previu e pediu.
Quanto mais as respostas forem militares, com direito a repetir alianças coloniais, quanto mais o racismo, ou melhor, esse “conflito de valores que não é racismo”, dá o tom dos debates, quanto mais se produzem amálgamas entre acolhimento de refugiados fugindo da destruição de seus países e laxismo com terroristas potenciais, mais o Estado Islâmico pode dizer aos jovens que procura vampirizar: “Vocês não têm lugar nessas sociedades, seu ressentimento justifica tudo”.
Por isso, uma invasão militar no Oriente Médio para destruir o EI não significará absolutamente nada. Ninguém estará mais seguro, como ninguém ficou mais seguro depois que Bin Laden foi morto ou que o Afeganistão e o Iraque foram invadidos e destroçados. Depois da desestruturação da Al Qaeda veio algo pior. Depois da destruição do EI virá algo pior. O problema não é “destruir” o Estado Islâmico, mas parar de produzir aquilo que o alimenta, seja no Oriente Médio, seja na Europa.
No entanto, talvez todos esses “erros” cometidos pelos governos ocidentais não sejam um acaso: para eles, melhor do que a árdua tarefa da construção da segurança real é a gestão contínua da insegurança e do medo. Para certos governos, a melhor maneira de governar é gerindo a desordem e criando uma situação de guerra permanente.