*Artigo do jornalista esportivo Juca Kfouri, originalmente publicado na edição desta quinta-feira (05/11) da Folha de São Paulo.
Camila Kfouri é minha filha e com um texto dela a coluna participa, como já fizera em meu blog no UOL, da oportuna iniciativa de um grupo de mulheres corajosas.
Com dor, com emoção, carinho, mas, sobretudo, com profunda admiração pela valentia de quem se expõe por uma causa maior.
Pais costumam, para proteger as crias, olhá-las sempre como se fossem pequenas.
Pois a minha pequena é enorme. Invejo sua bravura, que fica também registrada no papel, indelével:
“Eu não participei da campanha #meuprimeiroassedio.
Não tive a coragem necessária para fazer meu relato.
Porque ele me fere, fere minha família que só soube quando eu tinha 21 anos e convive com a dor de não ter podido me proteger.
Não consegui dar o meu depoimento mesmo sabendo que a falta dele fundou em mim uma autoimagem negativa e culpada.
Não sei ao certo quanto tempo durou e nem que idade tinha, só sei que tinha menos de 7 anos e que essa seria apenas a primeira violência sofrida pela criança que fui na São Paulo dos anos 1980, sob a sombra do governo Paulo Maluf.
Apesar do meu silêncio, ou por causa dele, foi para falar deste tema que, pela primeira vez, meu pai me convidou para ocupar o espaço dele, como uma voz feminina, destoante de seu mundo futeboleiro.
Eu não gosto de dizer não para o meu pai e, se acho lindo que ele participe da iniciativa, me sinto obrigada a fazer minha parte.
No fim da semana passada, as mulheres tomaram as ruas e cantaram #foracunha com indignação e alegria, num clima que não se via desde junho de 2013.
Este grito finalizou apoteoticamente uma semana em que o aparecimento de Simone de Beauvoir em prova do ensino público chocou a tradicional família brasileira que, como diz Caetano, vê tanto espírito no feto e nenhum no marginal.
Mas se um texto de uma filósofa (texto de 1949, diga-se) causou mais barulho do que a tentativa, na mesma semana, de diversos ataques do Congresso Nacional, na figura de seu odioso presidente Eduardo Cunha, aos direitos humanos básicos das mulheres, assistir a homens adultos sexualizando e objetificando uma menina de 12 anos em um programa de culinária foi demais para um número enorme de mulheres, não necessariamente ligadas à militância feminista.
E uma onda de relatos de seus primeiros sofrimentos causados pela violência machista tomou conta da internet. Não tem mais volta.
O que está dito está dito e não há mais como negar que se cometem violências atrozes contra as mulheres desde que são crianças, para que fique claro desde sempre que estão no mundo para se submeter ao desejo masculino, para servir, para obedecer.
A luta é apenas pelo direito à vida plena e em igualdade de condições e é chocante que, em 2015, ainda estejamos lutando pelo direito ao corpo, para que ninguém, nem o Estado nem as pessoas, se sinta no direito de violá-lo.
Nosso grito agora ocupa as ruas e as redes.
A bola está com a gente e se, por acaso, passar pelo pé de um homem, esperamos dos caras que acreditam que o mundo pode ser melhor, que devolvam o passe para a gente chutar para o gol”.