*Artigo do filósofo Vladimir Safatle publicado na edição desta sexta-feira da Folha de São Paulo.
Alguém que tivesse ido embora do Brasil em 2011 e voltasse agora acreditaria ter errado de país. Nada sobrou daquele país que acreditava estar em marcha irresistível para se transformar na quinta economia mundial e cuja presidenta alcançava cumes de popularidade. País que se vangloriava de ter escapado da crise de 2008 com uma impressionante velocidade de recuperação, além de vender para o mundo a imagem de ser o único BRIC que poderia realmente dizer possuir uma democracia consolidada.
Aquele que vem hoje ao Brasil encontra um país completamente paralisado, cuja população assiste, com um misto de sentimento entre o horror e a paralisia, aos lances diários de uma política gangsterizada levada a cabo por um casta que luta entre si não para saber qual será o programa a ser implementado, mas simplesmente para saber quem usufruirá do botim. Uma política que chegou ao ápice maior da hipocrisia. Um nível de hipocrisia difícil de suportar até mesmo para nós, acostumados a ter de lidar com uma classe política conhecida por frequentar as páginas policiais.
Por exemplo, é só mesmo como uma pantomima circense que alguém pode abrir o jornal nesta semana e ver a foto de alguns “doutos” ligados ao PSDB e alguns “representantes” de movimentos “anticorrupção” entregar ao “ilibado” presidente da Câmara, o sr. Eduardo Cunha, um enésimo pedido de impeachment. O mesmo senhor que mentiu descaradamente a uma CPI sobre a existência de contas suas na Suíça, que luta desesperadamente para preservar-se no cargo a despeito de acusações da Justiça Federal sobre seu envolvimento orgânico em corrupção na Petrobras e que, agora, cria factoides para tentar desviar a opinião pública de sua situação espúria.
O último de seus factoides é uma lei que visa a dificultar as práticas de aborto em um país cujas leis sobre o assunto são de uma violência brutal e arcaica contra as mulheres. De acordo com as novas leis que podem passar no Congresso, ficará mais difícil e humilhante provar casos de estupros, e mesmo a pílula do dia seguinte poderia parar de ser vendida. Não é à toa que uma lei deste quilate seja apresentada por um senhor que não tem pudor sequer para mentir a uma CPI.
Muito de seu sentimento de carta branca para chantagear o país deve ser creditado a setores hegemônicos da imprensa brasileira que relutaram em fazer seu papel. Em vez de fornecer ao país a ficha pregressa deste senhor e de atentar a opinião pública para sua procedência das hostes de Collor e PC Farias, assim como para os múltiplos casos de corrupção nos quais ele aparecia envolvido, veículos de comunicação preferiram vender a imagem de um líder combativo, que poderia enfim emparedar um governo combalido e eivado de corrupção por todos os lados. Um pouco como quem pensa que pouco importa a cor do gato, desde que ele casse o rato. No entanto, ninguém nunca viu ratos caçarem ratos.
Mas mesmos aqueles que procuram defender o governo de um impeachment deveriam reconhecer o que realmente está em jogo. Não estamos assistindo a alguma tentativa de golpe contra um programa popular de esquerda. Desculpe-me, mas Dilma não é João Goulart, nem Joaquim Levy é Celso Furtado. Estamos assistindo a uma luta sangrenta para saber que grupo comandará um programa já decidido de véspera, e que não mudará. Mesmo as pequenas margens de diferença que existiam entre a versão petista do programa e a versão tucana foram queimadas. Ou seja, o cenário está mais para luta florentina pelo poder por meio de jogos de bastidores do que para embate realmente político a respeito de concepções distintas da vida econômica e social. Por isto, em vez de procurar justificativas para a defesa contra o impeachment, servindo assim de anteparo contra um governo morto, melhor seria se estivéssemos realmente comprometidos em construir alternativas para além deste cenário de filme de horror.
Tudo isto é o resultado do que ocorreu em 2013. Na verdade, 2013 foi um dos mais importantes acontecimentos da história brasileira não por aquilo que ele produziu, mas por aquilo que ele destruiu. O Brasil de 2011 está longe porque ocorreu 2013. Desde então, ficou claro como nenhum ator político brasileiro, à esquerda e à direita, estava à altura dos desafios postos pelas manifestações, de suas demandas de reinvenção da experiência política e de nova partilha das riquezas. 2013 destituiu todos os atores políticos. A partir de então, a política brasileira virou o ringue de atores destituídos que lutam desesperadamente para impedir que algo realmente novo aconteça. Mesmo que, para justificar a imobilidade, eles precisem inventar um impeachment.