Artigo do Filósofo e Professor da USP, Vladimir Safatle, publicado na Folha de São Paulo desta terça-feira (28/07)
Há anos, escrevi aqui que um país em involução mental só consegue contar até dois. Seus debates organizam-se a partir de um polaridade simplória na qual nenhum pensamento um pouco mais elaborado é possível.
Tudo deve encaixar em dois conjuntos, sendo que um deles serve apenas para ser sumariamente descartado e esconjurado. Este é um dos aspectos daquilo que Christian Dunker chamou recentemente de “lógica do condomínio” a organizar a vida intelectual do país.
De fato, há algo de cômico em ter que ouvir cada vez mais frases como “Vá para Cuba” ou “Aqui não é a Coreia do Norte” todas as vezes que alguém defende políticas esquerdistas de combate à desigualdade social e de regulação econômica.
Não passa na cabeça destas pessoas que é possível ser radicalmente de esquerda e contrário, por exemplo, ao Estado degenerado que acabou sendo implantado em Cuba. Não, isso é muito complicado para alguém que, no fundo, só consegue pensar com as dicotomias mais primárias da Guerra Fria.
Da mesma forma, é patético ter que receber afagos como “você faz o jogo da direita” todas as vezes que critica de forma dura os descaminhos do governo federal. Normalmente, tais afagos vêm de pessoas que procuram esconder sua capacidade de pensar criticamente sob a fantasia da luta constante e inglória contra as forças do atraso.
Há meses, apareceu em uma livraria um dos títulos mais inacreditáveis que um livro poderia ter: “10 livros que estragaram o mundo”. Entre eles estavam listados obras de Freud, Darwin, Lênin, Hitler, Nietzsche e Marx. Esta é a melhor síntese deste pensamento binário que nos assola nos dias atuais.
Não se trata de dizer que você discorda do encaminhamento de certas ideias. Trata-se de dizer que tais ideias “estragaram o mundo”, que é melhor queimar os livros que as expressam, nunca mais lê-los, colocando-os ao lado de Hitler (que também gostava de falar de livros que estragaram o mundo e que mereciam ser queimados). Engraçado saber que livros que dizem que outros livros estragaram o mundo são o deleite de alguns.
Gilles Deleuze costumava mostrar a grandeza de seu pensamento fazendo algo que irritava mais de um de seus colegas. Mesmo sendo alguém vinculado à tradição do pensamento radical francês, ele não deixava de mostrar a genialidade de certos autores claramente conservadores, como Charles Péguy e Paul Claudel, ou de autores “moderados”, como Henri Bergson. Era uma maneira de mostrar verdadeira abertura ao pensamento e à criação, independentemente de onde ela viesse. Eis um bom exemplo a meditar nos dias de hoje.