Israel Dutra*
“Eles não nos deixam sonhar, não os deixaremos dormir”
A velocidade das notícias, no atual período turbulento que vive o planeta, se multiplica.
A morte de Bin Laden e a prisão de Strauss-Kahn trouxeram à tona mais incertezas no complexo cenário mundial. Contudo, um elemento novo, surpreendeu a todos. A irrupção do movimento de “indignados” em Madrid acelerou ainda mais a história. Seguido por quase 200 manifestações em todo o território espanhol, mobilizou centenas de milhares de pessoas no país. O “15-M”[alusivo a data da primeira manifestação] rompeu a apatia do calendário eleitoral espanhol. Em pleno 2011, temos um novo Maio na Europa. A juventude e o movimento dos “indignados” estão construindo uma ponte com as revoluções do mundo árabe e a luta do povo da Islândia contra os bancos e a crise. Foram manifestações que tomaram as praças centrais de Barcelona, Valencia, Granada, Sevilha, organizando acampamentos permanentes, com decisões assembleístas, atividades diárias, intervenções artísticas. Mesmo proibidos, centenas de milhares de pessoas, no dia da eleições[22 de março] desafiaram o Supremo Tribunal e tomaram as ruas de todo o país. Uma semana em que a Espanha respirou sua nova primavera política.
A mobilização da “Puerta del Sol”[1] trouxe, como bem afirmou Pedro Fuentes, a praça Tahrir para o coração da Europa.
A geração # : à rasca, sem futuro e indignada
As bases fundamentais para a mobilização da Puerta del Sol que se alastrou por toda Espanha combinam dois elementos: os efeitos cada vez mais duros da crise econômica e a marginalização política, efeito do regime controlados por uma partidocracia. A juventude que se expressa nas praças tem constantemente recebido o “não” como resposta. Não há vagas, não há lugar para intervir politicamente,não há moradia digna, não há educação de qualidade, não há possibilidades, não há futuro. A elite social e política espanhola, controlada pelo bipartidarismo a serviço dos bancos fez “ouvidos moucos” durante muito tempo. Agora o barulho é ensurdecedor.
A relação que existe com os processos de mobilização recente do mundo árabe é direta. Não apenas pela eficácia das convocações que, burlando os mecanismos “oficiais”, ocorreram via as redes sociais e formas de comunicação alternativa. A identidade é bem maior. Nas praças da Espanha se podia ouvir referencias tanto a Praça Tahrir quanto a Islândia[país que aprovou o não pagamento de dívida com bancos em dois referendos populares]. Solidários na precarização, solidário na luta. Como referência aos islandeses, que protestaram por um ano durante todos os sábados, os manifestantes cantavam: “Espanha em pé, uma Islândia é”.
Segundo dados oficiais, a Espanha atravessa uma condição histórica de desemprego: ultrapassa os 20%, chegando a quase metade da população quando considerados apenas os estratos mais jovens. Os cortes no orçamento atingem em cheio os serviços públicos essenciais. As execuções hipotecárias deixaram quase meio milhão de pessoas sem teto nos últimos anos. Apenas em 2009/2010 foram 270 mil espanhóis que perderam suas casas.
A juventude da Europa está no seu limite enquanto projeto de futuro. Há uma terrível curva descendente na escala da mobilidade social. Os filhos e netos não terão condições de competir no mercado e manter o nível de vida das gerações anteriores. A face portuguesa deste movimento se manifestou da mesma forma, espontânea e radicalizada, na manifestação do último 12 de março. Convocada por meios alternativos como o Facebook, a manifestação reuniu a juventude que se autodenomina “Geração à rasca” [alusão a condição precária da juventude portuguesa]. O 12-M foi a maior manifestação deste país desde a Revolução dos Cravos. Os protestos renderam ampla repercussão, precipitando a queda de Sócrates. A juventude tomou a cena em Portugal. O escritor Mia Couto analisou da seguinte forma:
“Eis agora uma geração jovem altamente qualificada, que andou muito por escolas e universidades mas que estudou pouco e que aprendeu e sabe na proporção do que estudou. Uma geração que coleciona diplomas com que o país lhes alimenta o ego insuflado, mas que são uma ilusão, pois correspondem a pouco conhecimento teórico e a duvidosa capacidade operacional.”
A nova geração, diplomada e sem perspectiva, conhece violenta e dramaticamente a política. À sua exclusão, social, cultural e econômica responde com uma saída coletiva e indignada. A juventude “Indignada” como seus pares da “Geração à Rasca” e mesmo os “diplomados” da Tunísia são produto direto da crise estrutural do capitalismo.
Nem socialdemocratas, nem conservadores
O movimento “Democracia Real”[ nome da articulação que organizou a convocatória do 15-M] inverte a lógica fria do regime democrático liberal.
Na Espanha, como em Portugal e na Grécia, quem aplica as medidas de austeridade é o Partido Socialista. Foi na gestão de Zapatero, ícone do social-liberalismo que se deram os cortes mais brutais. Para se ter ideia, o governo reduziu 15 bilhões dos gastos do orçamento público.
Além do controle exercido pelo Bipartidarismo na esfera dos postos executivos e legislativos, as organizações sociais e sindicais também são parte da crítica. As duas maiores centrais sindicais são espaços burocráticos e sem representatividade[UGT, CCOO]. No ano passado, o governo impôs o aumento da idade para a aposentadoria- a partir da nova lei, o mínimo será de 67 anos. Também foram privatizados setores como aeroportos e loterias. Tudo em nome da “austeridade fiscal”. As entidades sindicais não estabeleceram nenhum plano coerente de lutas. Pressionados pela base, por uma série de greves radicalizadas- como do metrô de Madrid- as direções convocaram uma greve geral em 29 de setembro de 2010. Apesar da condução morna e das atividades dispersas, a greve não foi “protocolar”. Grandes jornadas mostraram a disposição de luta dos trabalhadores, dos serviços, das funções públicas e da indústria. Uma vez mais, as centrais apresentaram seu caráter nefasto, não encaminharam nenhuma nova luta ou paralisação, acabando por aceitar a proposta do governo como um “mal menor”. Todos passos foram dados sem consultar as bases sindicais. O legítimo “pacto de cúpula”.
A irrupção da juventude, seguida por muitos trabalhadores, aposentados e setores da socidade civil não seguiu nenhum “script”. O Movimento Democracia Real desconheceu as “cúpulas” e direções sindicais. Os “políticos tradicionais” também foram atropelados pela ânsia de mudanças.
A proibição por parte do Supremo Tribunal das manifestações nos dias 21 e 22[véspera e data das eleições municipais] só demonstra a insensibilidade do Estabilshment. Os protestos se reproduziram de forma ainda mais massiva.
O resultado da eleição foi custoso para Zapatero. Uma derrota histórica. Os socialistas perderam em toda a Espanha. Após 32 anos, o Partido Socialista perdeu o governo de Barcelona. Os resultados de Bildu- coalizão da esquerda independentista no País Basco- afirmam que não é uma derrota de toda a “esquerda”. Quem sai derrotada é a fração majoritária da esquerda, que há muito aderiu ao social-liberalismo. O elevado número de votos nulos e brancos também é um sinal nesta direção. A lição das urnas, em que pese a vitória dos conservadores como produto do desgaste do PSOE, só confirma o que dizem as praças: o que se vive na Espanha é um simulacro de democracia.
O recurso à insurreição
O difícil quadro político poderia levar ao ceticismo? As praças da Espanha afirmam o contrário. Além de resistir contra as medidas de austeridade e rejeitar esta democracia, o movimento 15-M recorre a um velho método: o da mobilização. Um velho método, aliás, sempre reinventado, de forma criativa e crítica. O dia 15-M restituiu o próprio sentido da política na vida espanhola. Contra aqueles que acusam o movimento de ser “apolítico” vale ressaltar que ali, na praça, em sete dias, se fez uma política concentrada. Uma política que acelerou os tempos históricos. Nada da monotonia dos acordos parlamentares, dos bastidores sindicais, da corrupção legal ou ilegal do Estado. A política na sua forma plena, com conteúdo democrático, a decisão oriunda da coletividade, da Assembleia, da barricada. O “SOL” da praça de Madrid é mais do que uma metáfora. O conteúdo da ideia de “democracia real” é uma demanda atual. Necessária. Como ilustrou bem Atílio Boron, comparando o 15-M com a Comuna de Paris:
“Basta ver os documentos dos “indignados” de hoje para comprovar a assombrosas atualidade com as demandas dos comunardos e o pouco, muito pouco que mudou da política do capitalismo. Os jovens e os nem tão jovens que lotam umas 150 praças na Espanha não são “apolíticos” ou “antipolíticos” como certos setores da imprensa querem fazer crer, são gente profundamente politizada que se levam a sério na promessa da democracia e que, por isso mesmo, se rebelam contra a falsa democracia surgida das entranhas do franquismo e consagrada no tão aplaudido Pacto de Moncloa, exibido como um ato exemplar de engenharia política democrática”.
E não apenas a distante Comuna que ressurge nas praças e nos criativos cartazes do 15-M. Também as manifestações do movimento antiglobalização que tiveram lugar na virada do século e as grandes rebeliões da América Latina do mesmo período. A nova geração se une aos antigos lutadores, dando lugar a uma linda confraternização.
Tudo na praça é discutido. O clima de democracia direta e participação ativa é diretamente oposto ao que criticam no modelo oficial. Todas as tardes uma nova assembleia discute os próximos passos, conectando-se com os outros acampados do país. As equipes artísticas garantem apresentação de peças de teatros, exposição de cartazes, debates culturais, exibição de vídeos.
O programa de reivindicações também é discutido: vai desde a taxação das grandes empresas até a incorporação de demandas como habitação, educação, emprego. Um ponto importante é a defesa que o movimento assume dos jovens e trabalhadores imigrantes. Fica claro que “Democracia Real” é bem mais do que um slogan. É um conceito, em construção, que define o “novo”, o que está nascendo nas esquinas da Espanha. A força inventiva da coletividade oferece um projeto para salvar a Espanha do caos dos banqueiros e da UE.
Às portas de um novo 1968?
Os desdobramentos do “Maio Espanhol” ainda são imprevísiveis. O fato é que a Espanha entrou de vez numa dinâmica de protestos e mobilização social, a partir do 15-M. Porém, quais passos, quais limites?
O que assistimos nos últimos anos nos países onde aconteceram importantes processo de luta contra planos de ajuste e retirada de direitos foi o desgaste dos governos de turno e sua substituição pela via mais “crível” da oposição. O pêndulo oscila na hegemonia da sociedade e a insatisfação acaba canalizada pela “alternância” eleitoral. Sai o PSOE entra o partido conservador, a alternativa na França de Sarkozy são os Socialistas. Ou seja, uma dinâmica que não consegue superar os limites da luta defensiva e acaba se dispersando no terreno da luta política.
A referência a outro “Maio”, o de 68, é fundamental. O “ano das revoluções” foi um marco por conta da singularidade do processo: massivo, combinado e profundo. Massivo porque milhões em todos os continentes, de forma mais ou menos espontanea, mais ou menos sincronizada saíram às ruas para contestar o poder vigente. Combinado porque convergiram inúmeras lutas, desde a luta por um “socialismo com rosto humano” na Primavera de Praga, a luta dentro dos Estados Unidos contra a guerra, nos países latino-americanos, chegando ao questionamento do regime francês, uma democracia européia desenvolvida. E profundo, pois chegou a colocar em xeque o governo, inaguarando a inédita hipótese de crise revolucionária na França.
O movimento atual está longe deste patamar. Contudo, o “fantasma” de 1968 ronda a Puerta del Sol. Uma definição mais cautelosa poderia afirmar que estamos num movimento cuja força potencial está no meio do caminho entre o movimento antiglobalização [iniciado em Seattle em 99] e as lutas de 1968. Mais perto de Seattle do que do maio francês.
O que esperar do futuro imediato destes novos processos? Três fatores nos ajudam a pensar o que pode vir pela frente: a linha do BCE (Banco Central Europeu) tem sido errática para enfrentar a crise da dívida; o fato de que não existe nenhum sinal de recuperação da economia na Europa- a OCDE prevê que a Espanha vai demorar 15 anos para voltar a ter taxas de desemprego idênticas ao período anterior a crise; e por fim, o fator determinante: a capacidade de resistência social aos planos de austeridade.
Não sabemos o que pode passar. Novas manifestações estão convocadas. A tarefa é ampliar e estender os protestos. Ampliar para os trabalhadores e desempregados. Para os Imigrantes. Das praças da Espanha para as praças de toda a Europa. E conectar. Conectar-se com as revoluções árabes, com o exemplo islandês, com a resistência nos outros cantos do mundo. O futuro imediato do 15-M depende da força das mobilizações nos países onde a crise social se encontra em estágios avançados.
A Grécia é o grande vulcão que pode entrar em erupção e dar o esperado “salto de qualidade”. No dia 25 de Maio, dezenas de milhares de pessoas cercaram o parlamento grego. Uma bandeira gigante da Espanha abriu a manifestação: “Estamos despiertos, ya es hora que se vayan”
Nas manifestações gregas de 08/09 uma faixa se destacou. Seus dizeres “Povos da Europa, Levantem-se”.
Nas manifestações em Madrid e Barcelona outra faixa chamou a atenção. “Neste verão… te convidamos a virar do Avesso o mundo”.
Da resposta a este chamado depende o futuro.
[1] A “Puerta del Sol” fica no centro de Madrid e é o quilometro zero de todas as estradas espanholas.
Israel Dutra, sociólogo e membro da direção nacional do PSOL